Clara de Sousa

“A minha mãe nunca me tratou como uma menina frágil”

 

A jornalista da SIC conta as suas memórias, histórias e tradições vividas à mesa, em especial no Natal, com a família. Apaixonada por culinária e autora de livros onde partilha receitas, Clara de Sousa recua à infância para falar das aprendizagens que recebeu da mãe. Sabedoria que a moldou na cozinha e noutras dimensões da vida.

 

A forma como a “menina crescida”, de nove anos, aprendeu a ajudar a família na cozinha e a mexer em facas é mais do que uma curiosidade. É uma receita com os ingredientes para um crescimento saudável: responsabilidade, autonomia, segurança e confiança. 
É numa viagem à infância e adolescência, lugares seguros, onde recorda, por exemplo, que a mãe não tinha medo de que a filha se cortasse. Protegia-a, alertando-a para os riscos. “Só não se magoa quem não faz. Se me magoasse seria um pouco como ter caído de bicicleta e ter esfolado o joelho. Fazia parte”, revela.
Da cozinha de casa para o mundo, Clara de Sousa recebeu um dos ensinamentos para a vida: acredita mais no aperfeiçoamento do que na perfeição. 

“Não te alimentas só de comida. Fundamentalmente, nós alimentamo-nos uns dos outros. Somos alimentos uns para os outros”, escreveu o cardeal Tolentino Mendonça. A mesa é um lugar de partilha, histórias e memórias. Quais são as suas memórias mais felizes à volta da mesa?
As minhas memórias mais felizes à volta da mesa são, sem dúvida, as da infância e adolescência e têm muito a ver, não apenas com a comida, mas com as vivências. A cozinha era o coração da casa, era ali que quase tudo acontecia, onde passávamos mais tempo. Era a porta de entrada em casa, havia também um pequeno televisor que nos fazia ficar. Lembro-me tantas vezes de ver TV sentada no chão da cozinha em vez de ir para a sala sentar-me no sofá. Não era o local mais sossegado do mundo, mas todo o ruído natural de uma cozinha, com o barulho dos tachos, o cheiro da comida a ser preparada, as conversas cruzadas, tudo isso era uma almofada de conforto. 
Quando o cardeal Tolentino Mendonça diz que nos alimentamos uns dos outros, di-lo num contexto mais vasto, de um alimento espiritual e relacional, mas era isso que eu também sentia naquele espaço e com aquelas pessoas, as minhas pessoas.

Tinha nove anos, quando a sua mãe lhe incumbiu a tarefa de cozinhar. Em que circunstâncias foi feito esse pedido? E como recebeu essa ‘ordem’ materna para “pôr as mãos na massa”? 
Tinha nove anos, tinha acabado de entrar na escola preparatória, já estava uma menina mais crescida, ia a pé sozinha para a escola que ficava a 1,5 km de casa, e ela achou que tinha chegado a hora de eu começar a ajudar. Não foi propriamente um pedido, foi mais uma decisão comunicada com naturalidade, porque como eu bem sabia a mãe trabalhava muito e chegava já muito tarde e cansada a casa. Era preciso dividir tarefas. Antes disso, já tinha começado a ajudar nas limpezas da casa, sempre ao sábado, ou a ajudá-la na cozinha a descascar batatas ou a fazer bolos. Esse processo já tinha começado, mas este era o primeiro em que me dava total autonomia. Deixava os ingredientes, o peixe ou a carne a descongelar, explicava o que tinha de fazer e eu fazia. A partir desse dia passei a cozinhar com regularidade, coisas muito simples, mas eu gostava da responsabilidade e gostava da confiança que a minha mãe me tinha dado. 
Sentia-me preparada para tentar. A minha mãe nunca me tratou como uma menina frágil. A forma como comecei a mexer em facas é emblemática. Ela começou por me segurar nas mãos e dizer como se cortava, ia corrigindo sempre que necessário, sobretudo quando levava muita batata agarrada à casca, fui melhorando a minha motricidade fina, em nenhum momento ela teve muito medo que eu me cortasse, fazia parte do processo. Acho que esta formação moldou-me profundamente. Deu-me autonomia, deu-me segurança.

A esta distância, consegue recordar os sentimentos a confecionar as refeições para a família?
Lembro-me de que começava a preparar o jantar por volta das sete da tarde e lembro-me em particular de um dia em que estava tão distraída a montar um castelo de legos no chão da cozinha que não dei pelas horas a passar. De repente, a minha mãe e o meu pai chegam a casa e não havia nada feito. Levei um raspanete, claro, mas foi só aquela vez.
Lembro-me de ter o cuidado de lavar os legumes que ia buscar ao quintal e que o meu pai cultivava. Era um privilégio. Ou os tomates, alfaces e cebolas que arrancava da terra, para fazer uma salada. Eu adorava essa parte, adorava ver o processo de crescimento, era muito curiosa, ainda sou. O meu pai explicava-me como arrancar as cebolas ou as cenouras da terra, sempre torcendo um pouco a rama, com a força certa, antes de puxar.
Ao cozinhar lembro-me de ter orgulho de me ter sido dada essa responsabilidade e do desejo de ter o elogio merecido no final. No entanto, à medida que o tempo foi passando, comecei a querer fazer outras coisas para variar e fui arriscando noutros pratos para os surpreender. Umas vezes correu muito bem, outras menos bem, mas pelo menos tentei e a minha mãe percebeu exatamente que era a minha tentativa de evoluir. Por isso quando não corria tão bem ela explicava-me como podia correr melhor.

Que estímulos e conselhos recebia da mãe para continuar a desempenhar bem a função de ‘cozinheira’?
A minha mãe era muito transparente a esse nível. Quando gostava dizia que gostava e quando não gostava tanto explicava-me como melhorar, como poderia dar mais sabor e sempre insistia que é preciso provar. Esse conselho ficou. Eu provo sempre o que estou a cozinhar. Muitos dos cozinhados que se faziam em casa não tinham receita escrita, era tudo muito intuitivo, com algumas regras básicas – por exemplo, o tempo de cozedura das batatas ou do arroz ou dos ovos – mas no essencial era intuitivo. E por isso provar era uma regra de ouro.
Depois, já falei disso há pouco... a atitude que ela tinha perante os perigos. A forma que ela tinha de me proteger era alertando-me para os riscos. Se me cortasse, aprendia a ter mais cuidado da próxima vez. A cozinha era, no fundo, um espaço de liberdade, onde eu crescia, literalmente, a fazer. E só não se magoa quem não faz. Se me magoasse seria um pouco como ter caído de bicicleta e ter esfolado o joelho. Fazia parte.

Qual foi o melhor elogio dado pela mãe? 
Não me lembro de nenhum em particular, mas quando ela ou o meu pai diziam que estava ótimo eu ficava superfeliz. Ainda hoje fico, faz parte. Depois de tanta entrega, ter um elogio, ver as pessoas a desfrutar com prazer de uma refeição feita por nós, é algo que me deixa muito feliz.

Que pratos e histórias recorda, com especial ternura, da mãe que era cozinheira profissional?
Recordo os pratos feitos com tempo, o naco de carne assado no tacho bem devagar, regado aos poucos para não secar ou queimar. E o cheirinho que libertava para toda a casa.
Recordo o cozido à portuguesa, que ninguém fazia como ela, em grandes tachos, quase sempre para reuniões de família com 15 ou 20 pessoas à mesa. Recordo os fins de semana em que ela aproveitava para fazer pastéis, que congelava, para depois vender às vizinhas que os vinham comprar lá a casa. Ensinou-me a enrolar croquetes, a passar rissóis por ovo e pão ralado e a alinhá-los bem nos tabuleiros. Era trabalho, mas era aprendizagem também. Exigia método e concentração.
Recordo os dias em que se fazia o pão de ló, por regra ao fim de semana, em que eu ficava com a tarefa de bater as claras à mão, isto ainda antes de termos comprado uma batedeira elétrica. E no final a minha mãe já sabia que não podia usar o “salazar” a 100% porque eu gostava sempre de rapar a taça da massa crua. Eram pequenas coisas, simples, que se calhar hoje muitos não valorizam, mas foram momentos felizes que é impossível esquecer.

Quando recua aos Natais da infância, para onde o coração a leva?
Quando penso nos Natais da infância, penso numa casa cheia na noite de 24. A minha mãe era o eixo da família, era ela que juntava toda a gente. Desde que morreu, essa dimensão mais alargada perdeu-se. Mas conservo essas memórias, dos meus tios e primos e das conversas e risadas. À mesa, o bacalhau com couves e batatas, o bolo-rei, o pudim, os sonhos, as filhós e as rabanadas que ela regava com doce de ovos. Era uma mesa viva e barulhenta, mas tudo estava certo porque estávamos juntos.
Depois, os mais novos tinham de conter a maior excitação até ao dia seguinte, porque colocávamos as pantufas na base da árvore de Natal e os presentes só apareciam por magia na manhã seguinte. Assim que acordávamos, invadíamos o quarto dos nossos pais aos pulos em cima da cama e ali abríamos os presentes, que nunca foram muitos. Eu não gostava muito de roupa, só ficava feliz se me dessem jogos novos, de tabuleiro ou para montar. Era o que eu mais adorava. Mas às vezes lá saíam umas meias ou um pijama e acho que nunca consegui disfarçar que não era aquilo que mais queria. 

Que tradições mantém à mesa no Natal? E quais as inovações?
Hoje em dia nunca faço o tradicional bacalhau com couves, que não é apreciado aqui em casa a não ser por mim. Opto por fazer pratos de bacalhau no forno. O Bacalhau com Broa é o favorito, mas também o Bacalhau com Natas. 
Da tradição familiar mantenho o pudim, que pode ser o de ovos ou outro para ir variando, o bolo-rei ou rainha e os sonhos. Às vezes também faço o pão de ló de Ovar ou o tronco de natal que os meus filhos adoram. Depende também do tempo que tenho porque há alturas em que estou a trabalhar. Tento não abusar na quantidade de sobremesas porque não quero ter de andar a comer o que sobrou durante uma semana. Já conheço a dose cá de casa. Faço sempre o q.b. mas vou inovando, sim; também gosto de os surpreender.

Quem e o quê não pode faltar à sua mesa de Natal?
O que não pode faltar na minha mesa de Natal é mesmo a família e o espírito certo da quadra. É o mais importante. Tudo o resto pode ser substituído.

Cícero dizia que “o melhor tempero da comida é a fome”. Concorda?
Concordo e discordo. A fome permite-nos alimentar o corpo, e quando se tem fome, pouco importa o sabor. Comer torna-se um ato de sobrevivência. Mas mesmo nessas circunstâncias, pode haver cuidado na forma como se “tempera”. A frase “comemos para viver e não vivemos para comer” também pode ser lida de outra maneira: viver não é apenas existir. É viver com experiências, com prazer, com curiosidade. A comida faz parte disso. Quando conseguimos transformar uma necessidade básica em algo que nos dá prazer, de forma saudável, estamos a viver de forma mais plena.

Qual é o melhor tempero da comida?
Para mim, o melhor tempero é o tempo. Não só da comida, mas da vida no geral. O tempo de pensar, de preparar, de deixar apurar, de ir acertando na dose do que se acrescenta, de estar presente. É uma forma de entrega pessoal. Uns valorizam outros não. Bem sei que hoje não temos o tempo das nossas avós, os casais têm vidas mais ocupadas, chegam tarde a casa, e às vezes só querem tempo para descansar, não para cozinhar. Mas para quem pode, cozinhar com tempo é de facto o melhor tempero.

Tem algum tipo de rituais antes de começar a cozinhar ou curiosidade que possa partilhar connosco?
Nada de especial. Tenho um sentido prático. Gosto de ter a bancada organizada, a mise en place com tudo, ou quase tudo cortado, como cebola, alho ou outros.  Não gosto do caos. O que acho curioso é que sendo a hora de cozinhar um momento de descontração, não deixa também de ser um momento de concentração.

O conhecido chef brasileiro Di Manno afirmou que “a gastronomia transforma alimentos em arte”. Na sua perspetiva, por que razão cozinhar é uma arte?         
Quando olho para o que fazem alguns chefs de enorme talento em todo o mundo até posso pensar em arte. As técnicas que se aplicam são de grande complexidade e mestria, muitas são verdadeiros processos de laboratório, e com resultados incríveis. E se os olhos comem primeiro, a arte que colocam no prato quase dá vontade de não comer para não destruir.
No entanto, a nível doméstico, não profissional, tenho um sentido mais funcional, mais prático e menos artístico, mesmo quando damos asas à nossa criatividade.

Talvez mais importante do que a perfeição é o aperfeiçoamento, o caminho que se vai aprimorando até se chegar ao ponto… na cozinha e na vida.
Eu acredito muito mais no aperfeiçoamento do que na perfeição. Atingir a perfeição é um pouco como tocar no arco-íris. A vida faz-se com aperfeiçoamento e a cozinha é uma escola a esse nível. Passo a passo vamos melhorando, vamos conhecendo as técnicas, vamos apurando, mas há sempre espaço para mais. O erro faz parte, e o desafio de melhorar é o que dá sentido. Na vida é igual. 

A Clara já afirmou que estar na cozinha e preparar uma refeição para quem é importante para si fá-la sentir-se feliz. Cozinhar é cuidado? É cuidar de nós e dos outros?
Cozinhar é cuidado, sem dúvida. Mas também é alimentar no sentido mais literal. Combinar estes dois é um gesto de amor, de atenção para com o outro. Eu quando cozinho estou sempre a pensar em quem vai desfrutar do que estou a preparar. E acho que é por isso que me faz tão bem.

Quais os critérios quando escolhe os ingredientes? E quando confeciona uma refeição, o que é mais importante para si?
Escolho ingredientes simples, frescos e, sempre que possível, da época. Algo que me vem do tempo em que ia colher tudo, ou quase tudo, ao quintal. Gosto da cozinha que respeita o produto, que não disfarça o sabor. Acho que é tudo uma questão de equilíbrio, de ponto certo e de autenticidade.

Sentiu alguma espécie de preconceito pelo facto de ser jornalista de um dos principais noticiários, em horário nobre, com a paixão pela cozinha e bricolage, partilhando esses conhecimentos com o público através de livros e um site
Sim, senti, mas foi algo que nunca valorizei, caso contrário teria desistido ou nem teria avançado. Dar visibilidade a esta minha faceta foi um processo natural. Tão natural como o jornalismo a que me dedico há mais de 30 anos, com rigor, método e verdade. Tanto no jornalismo como na cozinha, o que me move é a autenticidade. Acho que a maioria das pessoas percebe isso.

Que sonho acalenta para este Natal, com possibilidade de se estender para os anos vindouros?
A cada Natal fico feliz por continuar com quem importa, por estarmos todos bem e por estarmos juntos a desfrutar de uma noite tão especial. Não preciso de mais nada. 

Sílvia Júlio