Arlindo Oliveira
Inteligência artificial: E o futuro acontece
Professor catedrático do Instituto Superior Técnico, doutorado pela Universidade da Califórnia, em Berkeley, presidente do Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, em Lisboa, professor convidado da Universidade da Ciência e Tecnologia de Macau, presidente do comité de acompanhamento da Agenda Nacional de Inteligência Artificial, considera que “na área da inteligência artificial, o futuro é feito de incógnitas”
Arlindo Oliveira, autor de centenas de artigos científicos e cinco livros traduzidos em diversas línguas, publicou recentemente A Inteligência Artificial Generativa (Fundação Francisco Manuel dos Santos), um ensaio que nos interpela e desafia a pensar: “As máquinas serão um dia capazes de ser inteligentes, de pensar e até de sentir, tal como o ser humano?”
No filme 2001: Odisseia no Espaço (de Stanley Kubrick, 1968; adaptação do livro de Arthur C. Clarke), estamos no início do século XXI e a Discovery viaja no espaço. A bordo da nave espacial viajam navegadores, astronautas e Hal, um supercomputador que rivaliza com a mente humana. O que recorda deste filme?
Na altura, fiquei muito impressionado. O filme estava tecnicamente muito bem realizado e o Hal era, de facto, aquela ideia de inteligência artificial concretizada de uma maneira muito bem feita. É um filme muito marcante e interessante. Marcou-me no sentido de concretização do que eu via que iria ser a inteligência artificial. Naquela altura em que vi o filme, já tinha comprado e programado um computador. Pouco depois, em 1982, entrei no Instituto Superior Técnico.
Durante a juventude teve interesse pela leitura de ficção científica?
Era um grande amante de ficção científica. E ainda sou. Tenho uma grande coleção de livros e continuo a ler ficção científica, mas agora o tempo é curto.
Numa recente palestra, no Instituto Superior Técnico, afirmou: “O cérebro é um computador universal. Se soubermos computação, podemos programar numa máquina todo e qualquer comportamento inteligente que os seres humanos possam ter. E isso é fascinante.” É este fascínio que o move na sua carreira ao longo da vida?
É muita curiosidade. De facto, é esta curiosidade de perceber como é que as coisas funcionam e como é que a inteligência se desenvolve. Daqui a não muitos anos poderia reformar-me e provavelmente será com pena.
Preside o comité de acompanhamento especializado, para a execução da Agenda Nacional de Inteligência Artificial, que contempla o desenvolvimento e lançamento do primeiro grande modelo de linguagem português, Amália. Nesta fase que informação nos pode adiantar?
Está aberta uma consulta pública, e tem havido reuniões sobre a discussão da Agenda. Relativamente ao Amália, o plano mantém-se. Aliás, como se viu o entusiasmo dos media, com uma visão muito negativa sobre isto, até com insinuações de falta de propriedade... Estou à vontade para falar porque não tenho qualquer interesse financeiro, naturalmente. Mas, achei a posição dos media muito agressiva. O Governo está a proceder, cumprindo todos os passos legais no mais estrito cumprimento da legalidade. Lamentavelmente demora tempo. Portanto, essa é uma das infelicidades do nosso sistema ocidental, a burocracia é muito pesada para os governantes e para nós.
Quando diz que os media foram muito agressivos, o que gostaria de salientar?
Um anúncio que poderia ter sido recebido com alguma satisfação ou, pelo menos, com indiferença, foi muito atacado pelos media. Como se o Governo estivesse a favorecer uma empresa, que até nem era verdade, porque as componentes técnicas são de Institutos de investigação e não tirarão daqui qualquer vantagem relevante financeira, uma vez que os custos são essencialmente de computação e gastos com pessoas para trabalhar.
E o que vê de positivo neste projeto?
O Amália, em particular, acho interessante. Os modelos estão cada vez mais complexos, e a sua capacidade para trabalhar diversas linguagens cada vez mais interessantes. E, como se sabe, podemos falar em Português como a maioria dos grandes modelos de linguagem. Mas, apesar de tudo, são treinados com dados mundiais. E os dados em Português de Portugal são uma fração pequeníssima. Portanto, estes modelos têm muito mais sensibilidade em questões de linguagem do Inglês e questões culturais brasileiras, porque muitos destes modelos falam em Português do Brasil. Para haver um modelo em Português continental, provavelmente baseado nos modelos que foram desenvolvidos para as línguas europeias, parece-me que faz todo o sentido se quisermos que a utilização destes modelos se divulgue e que as pessoas interajam com eles de uma maneira natural da língua e no contexto das questões particulares a Portugal.
E que valorizem a língua portuguesa.
Sim, que valorizem a língua e preservem as nossas questões culturais. Porque, por exemplo, se perguntar ao ChatGPT quais são os maiores escritores da língua portuguesa provavelmente vão sair escritores brasileiros…
Quer fazer essa pergunta agora? Seria interessante.
A resposta do ChatGPT é curiosa: Luís de Camões, Machado de Assis, Fernando Pessoa, José Saramago e Clarice Lispector. Por acaso, pensei que fosse pior.
Muito recentemente Elon Musk anunciou o lançamento da inteligência artificial Grok-3. Qual a diferença entre este robô de conversação e o ChatGPT?
É muito parecido. Os mais comuns são os robôs de conversação como o ChatGPT, mas agora estão a começar a aparecer estes robôs que raciocinam (‘raciocínio’ talvez seja uma expressão forte), mas além da conversa que fazemos, têm capacidade de criticar o seu próprio output [processamento interno realizado por um computador] e evoluir.
Na sua mensagem de presidente do INESC, diz: “As futuras gerações merecem que façamos, hoje, o melhor que for possível para que o mundo de amanhã seja mais estável, tolerante, inclusivo e sustentável”. Com a inteligência artificial está a formar-se uma nova sociedade, que futuro imagina para as próximas gerações?
Trabalho nesta área há muito tempo. E sou um otimista. Continuo a entender que a inteligência artificial pode beneficiar muito, substituindo ou complementando humanos em tarefas aborrecidas e repetitivas. Temos a robótica onde é difícil arranjar pessoas. Na web podemos ter sistemas a procurar conhecimento e resolver alguns problemas da humanidade, no ambiente, nos materiais, etc. Posto isto, também reconheço que a inteligência artificial tem sido sistematicamente instrumentada por grandes empresas com fins essencialmente comerciais.
O lado negativo…
Há uma manipulação dos mecanismos democráticos que é preocupante. Deixam-me particularmente preocupado os riscos da desinformação, a manipulação da informação, a criação de bolhas. Enfim, não necessariamente a inteligência artificial generativa, mas todos os mecanismos preocupantes, em particular, a concentração do poder económico das grandes empresas que concentram a maior parte do poder e que são super estatais. E, em muitos casos, não são alinhadas com os interesses dos cidadãos e dos países. Vejo com preocupação, mas reconheço que não é possível parar este comboio.
O que podemos fazer?
Devemos tentar usar a inteligência artificial para o bem, sermos todos esclarecidos e percebermos quando podemos estar a ser manipulados ou desinformados, minimizando os riscos e as componentes negativas.
As ações da Agenda Nacional de Inteligência Artificial estão orientadas em três eixos de atuação, um deles é o talento. Como estamos posicionados a esse nível?
Nós até criamos o talento e temos boas universidades que criam jovens talentosos. Temos seguramente talento em Portugal, mas temos uma dificuldade: não somos competitivos em termos salariais, nem em termos fiscais. As pessoas com competências obtêm salários elevados noutros países, sobre os quais pagam menos impostos, especialmente quando já não são assim tão jovens. Neste momento, estamos a perder muitas pessoas para o estrangeiro. E não estamos a conseguir atrair os estrangeiros com a mesma intensidade. A meu ver, esse é o maior desafio de Portugal na questão do talento. Não temos condições, de facto, para reter todos os melhores talentos, perdemos muitos, e também não conseguimos atrair os talentos estrangeiros com os salários que conseguimos pagar em Portugal.
No seu ensaio destaca que “na componente legislativa, a União Europeia está claramente no pelotão da frente”, já foram aprovados os Regulamentos da Inteligência Artificial, dos Serviços Digitais, dos Mercados Digitais e (há mais tempo) o Regulamento Geral de Proteção de Dados.
Sim, está no pelotão da frente… Não sei é se está exatamente a ir na direção certa. Estive em Paris, na Cimeira de Ação sobre Inteligência Artificial [10 e 11 de fevereiro] e o foco da Europa era quase exclusivamente na regulação, com um foco quase inexistente na componente de inovação, parecendo que os americanos e os chineses inovam e nós regulamos.
Em novembro de 2022, a empresa norte-americana OpenAI fez o lançamento do ChatGPT. No início de 2024, como refere no livro A Inteligência Artificial Generativa, já tinha mais de 150 milhões de utilizadores. Podemos definir o ChatGPT como uma janela de conversa pronta a dialogar connosco como se de um ser humano muito competente se tratasse?
Exatamente, complementando apenas com duas características marcantes: tem um conhecimento enciclopédico de uma vastidão de temas, mas, às vezes, fala de coisas que não sabe ou inventa.
Quando refere que “a capacidade de modelos de linguagem para gerar listas de referências, livros, artigos ou obras de arte convincentes mas inexistentes, exige que estes sistemas sejam utilizados com grande cautela”, considera que implica criar diferentes modelos de ensino?
Sim, acho que vai ter impacto significativo no ensino. Obriga-nos a mudar a forma de ensinar e também a forma de avaliar. Talvez não faça sentido ensinar exatamente da mesma maneira e pedir exatamente as mesmas coisas, como ensaios, relatórios, análises. Por outro lado, temos de adaptar a avaliação num estado de coisas onde a qualidade da escrita é muito acessível, portanto, deixa de ser um critério. E também não queremos que os alunos dependam completamente destas ferramentas, mas que aprendam os conceitos que são essenciais. Conceitos que temos de definir e não são assim tão óbvios.
E onde se situam a criatividade e o pensamento crítico?
Temos de ensinar de maneira que o pensamento crítico não desapareça, pelo contrário, que se fortaleça nesta situação onde é tão fácil obter informação e tão difícil ter a certeza de que é correta. É fundamental ter espírito crítico para conseguir usar da melhor maneira as tecnologias que existem.
Segundo dados recentes, o ChatGPT tem 400 milhões de utilizadores por semana.
Todos os meus alunos usam o ChatGPT e duvido que o Técnico seja único nesse aspeto. Entre os jovens está francamente divulgado, nas gerações avançadas provavelmente não tanto. Os portugueses, em geral, adotam com entusiasmo as novas tecnologias. E também adotaram esta. Noto também que é mais fácil usar o ChatGPT do que o Excel, ou até o Word. Portanto, desse ponto de vista, é uma tecnologia muito mais acessível. Basta saber escrever no computador e não é preciso rigorosamente mais nada.
No seu livro, diz: “Num futuro não muito distante é bastante provável que tenhamos sistemas de inteligência artificial capazes de, tal como nós, processar grandes volumes de dados para raciocinar (…) não sabemos ainda se algum dia terão características que hoje não associamos a máquinas, como consciência, senciência, emoções e livre-arbítrio.” Isso poderá acontecer?
Os últimos modelos da DeepSeek, OpenAI e Google já começam a exibir uma capacidade de raciocínio que não estava procedente nos modelos de apenas há um ano. Esta capacidade de raciocínio, a meu ver, está no caminho para dotar estes sistemas dessas capacidades mais avançadas de que falei. A única pergunta é quanto desse caminho ainda tem de ser percorrido. Acho que isso vai inevitavelmente acontecer. Não há um acordo sobre o que é a consciência ou de onde pode vir o livre-arbítrio em sistemas determinísticos. É uma questão muito polémica, mas será clarificada. Não acho que haja uma limitação inerente à espécie humana de não poder perceber isso. E um dia quando perceber, vamos provavelmente decidir dotar carros autónomos de livre-arbítrio para poderem tomar decisões avalizadas. Estou convencido de que será inevitável ir nessa direção. Embora, possa acontecer que por decisões políticas, ou sociais, decidamos parar o desenvolvimento da tecnologia. Há pouco tempo li que o físico britânico Stephen Hawking identificou quatro perigos existenciais para a Humanidade: guerra nuclear; aquecimento global; armas biológicas; inteligência artificial. Não estou a ver que consigamos ter um acordo global de todos os países e de todas as instituições do mundo em parar o desenvolvimento da tecnologia. Portanto, acho que vamos ter de viver com uma tecnologia que vai nessa direção. E depois veremos quais são as consequências.
Nasceu em Angola. Qual é a sua relação com África?
Nasci em Angola, mas vim ainda criança e não tenho grandes memórias. Depois estive em Moçambique algum tempo. Dizer que é minha casa, não é de certeza. Mas, tenho um fascínio por África. Voltei lá várias vezes, acho que é um continente muito único.
Viveu também na Suíça, Estados Unidos, Japão e China (Macau). Onde se sente verdadeiramente em casa?
Em Portugal senti-me sempre em casa. Vivi muito tempo nos Estados Unidos e houve várias décadas em que me sentia em casa, em particular, na Califórnia. Além de estudar e viver, voltei lá muitas vezes. Lembro-me, claramente, que durante décadas era mais um cidadão da Califórnia do que de Lisboa. Mas, essa sensação foi-se alterando com o tempo, porque tenho vivido aqui as últimas décadas. A casa agora é seguramente mais Lisboa do que os Estados Unidos. Mas, devo acrescentar que sinto a Ásia, em particular dois lugares que conheço melhor, Macau e Tóquio, onde nem sequer domino a linguagem (embora em Macau esteja tudo escrito em Português), mas são sítios onde gosto muito de estar, onde não há esta agressividade dos media que vemos tanto em Portugal e nos Estados Unidos.
É professor convidado da UCT de Macau. Como olha para o continente asiático?
Tenho uma atração muito especial pela Ásia, onde gosto muito de estar e as pessoas são gentis. Ainda não está fora de questão vir a terminar a minha carreira para os lados da Ásia. A maior parte de nós não sabe o que se passa na China ou o que é a Ásia, em geral. E é muito interessante, pese embora os problemas de regimes autoritários. Essas questões existem. Mas, apesar de tudo, vejo a Ásia a evoluir numa direção que considero positiva. E, pelo contrário, vejo a Europa e os Estados Unidos a evoluir numa direção que considero negativa. Mas, claramente, é muito melhor viver em Portugal do que na China. A minha casa é Portugal.
TERESA JOEL