Frei Bento Domingues
“A Teologia é uma respiração”
A teologia levou-o de um pequeno lugar do Minho para o mundo, América Latina, África, Roma, onde conheceu o Papa João XXIII, a quem se deve o Concílio Vaticano II. É uma das vozes mais ouvidas dentro e fora da Igreja Católica.
No seu quarto humilde, onde sobressai apenas a cama, uma mesa de cabeceira e duas cadeiras, colocaram-lhe uma secretária em frente da janela que dá para as árvores de Monsanto. Ainda não tem o computador, virá depois, é nele que escreve. As redes sociais não o entusiasmam por aí além, mas tem pessoas bem informadas que o atualizam sobre o que é importante. Dos vários livros que repousam no tampo destaca-se “Sou um teólogo feliz”, de Francesco Strazzari, elaborado a partir de colóquios com Edward Schillebeeckx, um dos teólogos mais influentes do Concílio Vaticano II. Frei Bento nasceu numa terra pobre e talvez por isso, quando começo por lhe perguntar como é que se sente, se está bem, a resposta vem incisiva: “Sim, bem. Este é um lar pobre e ser pobre no meio dos pobres é muito bom.”
Estar ali a vê-lo diante da janela a observar as árvores – haveria de dizer a certa altura enquanto as contemplava “é um milagre!” – levou-me à primeira pergunta que lhe queria fazer, sobre a sua infância. Começa por me contar uma sucessão de histórias: a da sua avó que na febre pneumónica em 1918, conhecida também por gripe espanhola, ficou sem marido; a dos seus tios que foram para o Brasil, sendo que um deles não entrou nos Franciscanos em Montariol, em Braga, porque a sua avó, religiosa mas um pouco anticlerical, não deixou; também o relato daquele momento em que a sua mãe, que com a ida dos seus tios para o Brasil tinha ficado com cinco bocas em casa para alimentar, se opôs à plantação de árvores em terrenos usados para o pastoreio, “a minha mãe fez um protesto enorme e aquilo não foi florestado. Era uma terra pobríssima, havia muito poucas coisas com as quais se podia fazer dinheiro. Para comprar coisas ou para pagar dívidas e tudo isso, vendia-se um animal.” Mas a história mais importante vem quando fala daquele padre dominicano brasileiro que ficou a pregar no retiro de Nossa Senhora do Livramento.
Conta: “Ele pregava com tal fervor, a alegria dele, o espanto todo. Ele tinha, nessa altura, uns 30 anos. E era costume lá, quando se estava numa pregação, assim numa novena, íamos confessar-nos. Eu assim fui. E ele disse assim... ‘Então, quando fores grande, o que é que queres ser?’ E eu disse com a sinceridade maior: ‘Quero ser como você!’. E então depois fui para a Escola Apostólica, perto de Fátima. Uma escola muito especial. Ali era a lei da liberdade. Era uma coisa fantástica.”
Que liberdade era essa para ser assim tão diferente dos outros seminários?
Já lhe digo. Tinha-se criado em Fátima, no Convento uma coisa muito engraçada, um estudantado de teologia e filosofia. Era internacional. Tinha americanos, tinha belgas, tinha franceses. Depois fui estudar para Espanha. Não gostei nada. Ainda era no tempo do franquismo. Depois fui para Roma. De Roma para Toulouse.
Estávamos nas memórias da infância, falou-me deste momento em que descobre a sua vocação. De miúdo, de criança, o que é que se lembra ainda da sua terra?
Lembro-me das coisas como se fosse hoje.
Brincadeiras? A que é que brincava o Frei Bento? Ou não se brincava muito?
Não. Brincava-se. Com os objetos que a gente fazia. Não havia brinquedos. Com as ramagens dos eucaliptos que tinham cortado, havia um terreno que era muito íngreme e era como se aquilo fosse um escorrega. A gente escorregava. E atávamos uma árvore à outra. Era uma juventude pobre, mas muito, muito feliz. É necessário ver que Travassos era um lugar que não tinha telefone, não tinha luzes, não tinha nada. E depois, como eu não tinha jeito para nada.
Não tinha jeito para nada? O que é que é isso?
Era a minha mãe que dizia.
A sua mãe dizia-lhe isso?
Dizia. Porque... Aquelas coisas da agricultura não me inspiravam nada. Nada, não me inspiravam nada. Eu gostava era de ler.
Lembra-se de quando é que começou a ler?
Recordo mesmo. Era um livro em latim, imagine. Ainda não conseguia traduzir suficientemente. Mas… achava tão bonito aquilo, por causa dos sermões dos padres na igreja. Tomava conta das ovelhas e lia para elas. Era muito engraçado. Olhe aquilo que está aqui... – aponta para as árvores de Monsanto – A minha terra é ingreme. E tem muitos penedos, muitas coisas engraçadas. E S. Bento da Porta Aberta é do outro lado. Eu em pequeno via o horizonte. E pensava… ‘Olha, se fosse ali ao fundo podia tocar o céu.’ E então fui. Depois andaram a procurar-me. Porque eu perdi-me num monte. E porque é que me perdi? Porque de uma serra nascia outra serra. ‘Não era nesta, enganei-me. Era na outra’, dizia. Era uma coisa fantástica.
Frei Bento Domingues fala-nos depois do seu trabalho nos vários lugares por onde passou: na Pastoral de Jovens do Cristo Rei no Porto, onde foi a convite do seu irmão, Frei Bernardo, na América Latina, em África. E enquanto fala começo a ter a sensação de que tudo isso, por mais rico que seja – e Frei Bento teve um percurso singular e atribulado, atípico para um homem religioso, foi preso e torturado pela PIDE, esteve no apoio a presos políticos – acaba por ser um pouco circunstancial. Aquilo que é essencial virá a confessar depois: “Agora, aquilo a que dediquei a minha vida foi ao estudo e ao ensino da Teologia. Isso é que foi o centro. Em vários países.”
O que é que o fascinava na Teologia?
Na Teologia fascina-me procurar a inteligibilidade naquilo que aparece como absurdo. E então é necessário estudar. A Teologia é um estudo crítico das Escrituras. Das Sagradas Escrituras. E depois no que se foi desenvolvendo nas Igrejas. Aí também são precisas as Ciências Humanas. São Tomás de Aquino dizia que o teólogo tem que saber muito de muitas coisas. Porquê? Porque é a interpretação da vida humana. A interpretação dos caminhos da vida. E ajudar as pessoas a desenvolver o sentido crítico. Sabe, no Minho a qualidade da pregação dos padres era fracota.
Então a própria Teologia também poderia ajudar a reforçar essa mensagem, era isso?
Sim. A Teologia, como sabe... Teo + logia. O discurso sobre Deus. E para mim foi uma felicidade. Já publiquei uns onze livros. E agora ainda tento escrever. Ainda no domingo passado saiu uma crónica no Público. De quinze em quinze dias.
Estou a seguir aquilo que a Teologia significa para si. O que eu vejo é que a teologia, aproximando-o de Deus, no sentido da hermenêutica, da compreensão, parece que também o aproximou muito das pessoas, das suas realidades.
Sim, mas, repare: ‘Vós que dizeis que amais a Deus e não amais o próximo, estais a mentir.’ A fé em Deus, é fé nos filhos todos de Deus. Na humanidade toda. Em religiões diferentes. Mas nada, nada, nada pode substituir o laço entre Deus e nós. Porque Deus está connosco sempre, em todas as horas. Agora, tem dias em que uma pessoa tem nevoeiro. Como diz São João, Deus é amor. Não é dia sim, dia não. É a entrega. E o Jesus é aquele que é a face visível do Deus invisível. E, portanto, a teologia, para mim… é uma respiração. Uma respiração.”
Das suas viagens todas como teólogo se eu lhe pedisse uma evidência maior, o ponto alto dessa experiência o que me diria?
O ponto alto... E o ponto desgraçado... Foram as guerras. Quando fui para Angola, estava a guerra colonial. Depois, quando fui para o Peru estava o Sendero Luminoso. Também a guerra. Eram sempre países em guerra. E o que me impressionava é que as pessoas todas diziam que queriam a paz mas não faziam nada por ela. Então começavam a imaginar guerras... E foi tudo difícil, difícil.
Como é que se pode pensar em Deus no meio da guerra?
Pode. A guerra é o que Deus não quer. A guerra para Deus significa uma ofensa. Uma ofensa aos seres humanos. Deus é... Pai nosso. Só que há uma coisa, Deus não substitui o ser humano. Deus dá-lhe a liberdade. Eu digo assim... Não conheci país nenhum que não estivesse em guerra. Ou devastado pela guerra. A teologia da libertação era o que eu ensinava nessas alturas. Como fazer para nos libertarmos desta vontade péssima de fazer mal.
Fala das injustiças sociais, dos desequilíbrios e disparidades económicos, de como as pessoas e as empresas com mais recursos podiam fazer algo pela comunidade e conclui com uma frase que repetirá várias vezes ao longo da nossa conversa:
“Para mim o que era e é importante é que a gente ganhe juízo. É preciso ser muito tonto, é preciso ser muito mau para, tendo meios, ainda fazer a guerra. Como é possível? Falta de juízo e maluqueira...”
Está complicado, não está?
Está.
Fala do nosso país, refere que “Portugal teve duas frentes de desgraça, a Guerra Colonial e uma mentalidade salazarenta que por causa da guerra não queria que se desenvolvesse nada”. O que nos levou à questão da imigração. Diz que conheceu os horrores da emigração, viu em França a miséria em que viviam os nossos emigrantes. “E agora já estão todos a fazerem regras para impedir a imigração. Eu fico assim um bocado parvo. Não pode ser! As questões sociais são fundamentais. O trabalhar por uma igualdade possível. O sentido da interajuda. Quer dizer, temos de ter uma atitude perante a vida em que este mundo está como está por causa nossa e por isso nós podemos mudá-lo. E mudar este mundo para uma terra de paz e de prosperidade.”
Há um momento particular da sua vida: está em Roma quando acontece o Concílio do Vaticano II?
O João XXIII era um génio, fui à terra dele várias vezes, perto de Milão. Trouxe um certo humor à Igreja. E entusiasmou-me porque fiquei à solta. Quer dizer, antes a gente quase tinha de entrar na clandestinidade se queria falar sobre assuntos fundamentais. E o Vaticano II foi o poder de debater tudo, várias tendências. Eu faço uma ponte entre o João XXIII e o Papa Francisco. Os outros, entre eles os dois, fizeram o que puderam. Quando me obrigaram a ir para Roma, saio em Génova e apareceu-me um velhote que me orientou. Diz-me: “Tu és novo, vais para Roma e o que é que acontece? Agora tens de ir a todas as audiências do Papa. Tens de ir a todas porque são necessárias três bombas: uma em Washington, outra em Moscovo. E outra no Vaticano. Mas a do Vaticano já lá está.” Em Florença, no Convento de São Marcos encontrei o grande político La Pira [Giorgio La Pira, 1904-1977] e perguntei-lhe o que ele pensava sobre essa ideia. Ele disse-me: “Não sei se ele sabe o que disse. Mas é mesmo isso. É estourar com esses grandes centros da Guerra Fria. E da Guerra Quente.”
Essa analogia está a fazer lembrar-me que a Igreja às vezes não esteve no lado certo…
Claro que não. Tanta coisa. E o Papa Francisco foi uma pessoa que fez explodir toda a repressão que havia. Para mim o João XXIII era o pároco do mundo. Era a alegria do mundo, ele. E depois com a sua encíclica “Pacem in Terris” teve uma influência muito grande no mundo. É um documento que hoje se lê com toda a atualidade. O século XX foi muito complicado. E o outro anterior já tinha sido. – Frei Bento tem um momento de quase quebra – disse: “Eu não sei... Há um mal-estar dentro de mim, de que ao fim ao cabo não fiz nada para mudar isto.”
Que desencanto é esse?
O desencanto do mundo é essa loucura das guerras. E continua. Se fosse hoje a começar faria um programa. Mas o que eu vivi foi sempre o que as pessoas me pediram, nunca fundei nada. Nada. Livros, tudo.
Gostaria de ter feito um programa? Que programa seria esse?
Um projeto para reunir as pessoas. Fazer pontes entre as pessoas. Entre os países. No interior de cada país. É fazer mesmo acontecer. Fazer acontecer.
Como é que faria isso?
Na parte que tem importância a Igreja Católica, acho que a primeira coisa é com os miúdos. E depois quando vão para a escola é importante eles gostarem de estar juntos. De estudarem juntos. E depois quando vão para a Faculdade este mundo está viciado pelo carreirismo. Porque não fazem as coisas porque elas são importantes para a vida humana, mas fazem-nas só por ganância… Creio que era preciso uma movimentação mundial. Em vez de guerras, em vez de andar com o problema das fronteiras, era muito melhor fazer progresso. Fazer desenvolvimento. Solidariedade. Ética. Isso é que era importante.
Vou pedir-lhe uma coisa, Frei Bento. Feche os olhos uns segundos e imagine o mundo com que sonha e que gostaria de ter ao abrir os olhos. E depois abra os olhos e fale-nos dele.
É o mundo… do que falta fazer! A começar pelas crianças e adolescentes. O mundo com que sonho é um mundo em que as pessoas se reconheçam. Nós somos irmãos. O Papa Francisco dizia: “Fratelli tutti.” Todos irmãos. E agora estamos num tempo, ainda assim, duvidoso.
Falou-me de um mundo mais fraterno e, pela forma como fala, posso supor também que é um mundo onde há uma grande alegria?
É evidente. Eu fui sempre feliz. Com muitos problemas também, mas feliz. E creio que não podemos viver sem comunicar a alegria aos outros. Sem fazer da nossa vida, um viveiro da alegria. Isso parece-me fundamental. Porque… Oh, meu Deus, fazer uma religião triste, fazer uma religião horrível, quando ela deve ser um foco da alegria. E depois, em vez de andar a proibir isto, a proibir aquilo, proíbam a asneira. Não a liberdade humana. Não uma liberdade criadora.
Tem 91 anos. Como vê a passagem do tempo pela sua vida?
Ah, conheço pessoas com idade avançada e bem-dispostos. Na mesa do almoço, tenho ao meu lado uma senhora com 100 anos. E ela está muito bem. A minha geração teve uma vida muito desgraçada. Agora também digo, não sou sem esperança. Porquê? Porque a mínima coisa que uma pessoa faça é no bom sentido. Sonho sempre, como sonhava no tempo da PIDE que caíam as paredes, e agora sonho muito com o contributo que podemos dar. O que me interessa a mim é isso, encontrar pessoas que querem realmente mudar e ajudar a mudar. Há uma pastoral em que o Papa Francisco também falava dos avós [Mensagem para o IV Dia Mundial dos Avós e dos Idosos, 28-07-2024]. Eu creio que a junção de gerações é muito importante. Para que as pessoas não morram antes de morrer.
Como é que vê a morte?
A gente não tem ciência nenhuma acerca do céu. É uma intuição de fé. A minha representação é assim: Ser bem-recebido. Não sei de que maneira. Mas a minha ideia é que se vivemos com Deus, Ele não vai falhar. Tenho esperança de que Deus nos dirá a cada um de nós: “Anda, rapaz, agora vais entrar na alegria!”
Vamos terminar com o seu livro Fora do diálogo não há salvação.
O que enobrece o grupo humano são os laços entre as pessoas. Depois, entre cidades. Depois, entre países. É sempre o diálogo. Ele faz de nós pessoas diferentes. É um esforço da alegria. Faz-se assim essas pontes, esse mundo da paz!
Falou-me de que tinha esperança...
Há esperança na medida que a gente faz uma coisa bem feita. Esperança é as virtualidades humanas postas em ação. Temos capacidades, temos vontade e cada um deve fazer o melhor. Porque é muito possível que haja um milagre.
Joaquim Paulo Nogueira


